Odorico Paraguassu, o político corrupto imortalizado pela obra de Dias Gomes, é um dos mais divertidos e atuais personagens da literatura, teatro e TV brasileira. É também um dos mais multimídias. A peça, Odorico, O Bem Amado, foi escrita em 1962 e publicada pela primeira vez em 1963, num especial da revista Cláudia, com o curioso título de Odorico, o Bem Amado e os Mistérios do Amor e da Morte. No teatro, foi encenada pela primeira vez em 1969, e de lá para cá teve inúmeras remontagens. A mais recente no ano passado, com Marco Nanini no papel-título.O personagem fez história na TV. Foi levado ao ar pela primeira vez na extinta TV Tupi, em 1964, como um especial. Em 1973, seu autor tornou-se escritor de novelas da TV. Assim, a novela O Bem Amado tornou-se a primeira a ser exibida em cores no país e também o maior sucesso da sua época, muito por conta da genial interpretação de Paulo Gracindo. Em 1980, a peça tornou-se um seriado, com os mesmos atores principais, com tanto sucesso que ficou cinco anos em cartaz.
Cinema
Para conquistar status multimídia, só faltava mesmo ao personagem chegar aos cinemas. É o que ocorre agora, pelas mãos do diretor Guel Arraes, responsável pelo vigor cinematográfico e televisivo de O Auto da Compadecida (Globo, 1999).
O filme O Bem Amado chega aos cinemas em 23 de julho, com Nanini. Coube a José Wilker encarnar Zeca Diabo, o matador de aluguel, que na novela e no seriado era feito por Lima Duarte.
Nanini traz às telas a experiência de já ter vivido o personagem no teatro. Em entrevista coletiva, antes da exibição do filme no Festival de Cinema de Recife, em abril, contou que seu trabalho na peça foi fundamental para definir o tom do personagem no cinema.
- Foi no palco que pudemos tirar as conclusões para as filmagens. Quando comecei a ensaiar a peça ainda não tinha oficializado como seria o Odorico - explicou Nanini.
Atualização
No Festival de Recife, Guel Arraes, normalmente avesso a entrevistas, falou bastante sobre o filme. Conta que a adaptação para o teatro, com Nanini e a direção de Enrique Diaz, só necessitou ser atualizada.
- Tiramos a questão do coronelismo, que era mais característica dos anos 50, 60, e mudamos a época, dos anos 30 para os anos 50 - diz.
Já o roteirista Cláudio Paiva, do filme A Mulher Invisível e da franquia A Grande Família, explica que a transposição da peça teatral para o cinema é que precisou de alguns ajustes.
- Se você lê a peça original, percebe que ela é na verdade uma sucessão de esquetes, piadas em cima do comportamento político da época.
Continuidade
De fato, é como se fossem contos reunidos. Tem a história do primo moribundo, que Odorico manda trazer para Sucupira, mas ele acaba melhorando. Tem a gravidez de uma das irmãs Cajazeira, tem a vinda do Zeca Diabo... São histórias divertidas, mas sem uma continuidade.
- Nosso maior trabalho no roteiro do filme foi dar uma liga, fazer uma costura das histórias para sustentar os 90 minutos que o cinema exige. No teatro as histórias soltas funcionam bem, na TV elas podiam ser prolongadas, o que era ótimo para o formato de novela, mas o cinema pede um todo mais coeso - afirma o roteirista.
Um detalhe na peça facilitou a adaptação.
- Não é uma peça de ambientes fechados, ela acontece em várias frentes, tem muita ação e permitia muitas locações. Foi relativamente simples deixar com cara de cinema. Na verdade, de um meio para o outro, o que muda mais é a forma de atuar dos atores - explica.
Como a memória que as pessoas tem de O Bem Amado não é do teatro, mas da novela, natural que as cobranças do público sejam em cima desse formato. A exemplo do filme, ela foi ganhando mais histórias, e manteve a principal contribuição da TV para a história: o linguajar de Odorico. Na peça, as famosas frases erradas que Odorico falava não eram corriqueiras.
- Isso foi uma coisa muito divertida, que o Dias Gomes foi desenvolvendo durante a novela, e teve enorme aceitação do público - explica o roteirista.
Memória afetiva
Os fãs da novela irão lembrar para sempre das coisas que ele falava, como "prafrentemente" (ver quadro ao lado). Na novela e na série de TV, o vocabulário de Odorico foi um sucesso instantâneo.
- Muita gente saía às ruas repetindo os neologismos criados por Odorico - lembra Paiva.
O escritor José Dias, autor de Odorico Paraguaçu - O Bem Amado de Dias Gomes (Imprensa Oficial, 2009), explica que o novelista era cuidadoso na elaboração das frases.
- Ele procurava respeitar a função original dos sufixos e as regras de derivação impostas pela gramática, como o -ento, que tem uma função negativa, por exemplo, em "nojento", e criava expressões como "maquiavelento" ou "patifento" - explica.
As frases de Odorico tornaram-se clássicas. Diante de uma traição, ele não vacila em afirmar "Talqualmente César, estou cercado de Brutus por todos os lados", ou "É nisso que dá eleição direta. Elegemos um cangacista desalfabetizado e desapetrechado de caráter", e ainda a mais atual de todas, "Deixemos de lado os entretantos e vamos direto aos finalmentes".
Memória afetiva
No prefácio à peça, escrito na edição de 1970, Gomes conta que ela pertence a uma fase em que a dramaturgia brasileira procurava pesquisar nossa realidade, fazendo uma espécie de tipificação do nosso povo. Como era uma época de ditadura militar, ele alertava:
"Não se pense que a proibição do povo eleger seus candidatos nos livra de Odoricos".
Não deixa de ser curioso imaginar o que diria ele hoje, se visse que, tantas décadas depois, ainda estamos longe de nos livrarmos desses personagens. E de sua linguagem fabulista e confabulante.
O Odorico do século 21 |
Frases do filme mantêm a linguagem do personagem clássico de O Bem-Amado - Estou aqui, com a alma lavada e enxaguada de indignação por esse atentado covardista e crapulento! Diante do assassinato deste prefeito memorável, deste político relembrável, deste cidadão inolvidável o povo tem sede de justiça, de paz, e de... - Seus ateístas despenitentes! Vocês não respeitam nem um homem morto? - Se defunto votasse, o coveiro já estaria eleito! - Vexame para o nosso prefeito, agora em estado de defuntice compulsória, ter que andar três léguas para ser enterrado. - Povo de Sucupira, meus conterrâneos: vim de branco para ser mais claro. Se eleito nas próximas eleições, meu primeiro ato como prefeito será o de cumprir o funéreo dever de mandar fazer o construimento do cemitério municipal. - Meus conterrâneos! Tomo posse como prefeito desta cidade com as mãos limpas e o coração nu, despido estripitisicamente de qualquer ambição de glória. Nesta hora exorbitante, neste momento extrapolante eu alço os olhos para o meu destino e, vendo no céu a cruz de estrelas que nos protege, peço a Deus que olhe para nossa terra e abençoe a brava gente de Sucupira. - Calunismos. Eu também sou meio socialista. Não da ponta esquerda... do meio de campo, caindo pra direita! |
Dicionário Paraguacês |
 | Paulo Grancindo na pele do prefeito corrupto Odorico Paraguassu: atuação memorável | Vocábulos e expressões do Odorico Paraguaçu do teatro e da TV
- Acarajeizar, - Adulância - Aforamente - Alma lavada e enxaguada - Anais e menstruais da História - Apodrecento - Cemitério na sua virgindade defuntícia - Chegar aos finalmentes - Confabulância sigilenta - Coloquiamento sigiloso, com todos os acautelatórios
- Diversionismo desgastativo - Desculpento - Donzelas praticantes e juramentadas - Emboramente - Encupridamento de pequenos salários - Epistolista - Entrementemente - Escravagem - Esquerda badernista, desaforista e subversenta - Esverdecido amarelento - Ideia desapretechada de sensatismo - Imprensa lida, olhada e escutada - Larapista - Maquiavelento - Maucaratista - Merecência - Meticulância - Não obstantes, não obstantemente - Negativistas - Pacatista - Parede desalimentícia (greve de fome) - Pecadilhista - Prafrentemente, pratrasmente - Puxa-saquista - Talqualmente
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Zeca Diabo marca diferença de mídia |
 | Lima Duarte e Ida Gomes na novela da Globo (1973): mais destaque do que na peça | Personagem de Wilker no filme é diverso do imortalizado por Lima Duarte
Em sua autobiografia, Dias Gomes conta que se inspirou nos políticos clássicos, que falam de forma empostada e com palavras difíceis para impressionar o público. Mas o estilo de Odorico, o gestual, foi inspirado no político Carlos Lacerda, muito influente e popular nos anos 50-60. A origem da peça foi uma notícia verdadeira, que Dias leu num jornal, de um político nordestino que não conseguia inaugurar o novo cemitério. - Procuramos preservar a história, do político que acha indigno que os moradores de uma cidade tenham que ser enterrados em outra e aproveita para faturar - explicou o diretor.
Talvez a maior diferença da peça para o filme seja o Zeca Diabo de José Wilker, totalmente diferente do imortalizado por Lima Duarte. Mas o roteirista Cláudio Paiva acha que isso não será um problema. Para ele, a memória das pessoas sobre o personagem é mais mítica, e a novela é muito antiga.
- Na peça, Zeca Diabo só entra depois de quase dois terços da história. Uma loucura, pois ele era o grande vilão e estava na memória de todos - explica Paiva. A solução encontrada para tornar sua presença no filme mais importante foi fazê-lo entrar em cena bem mais cedo.
- Criamos mais situações com sua presença para o filme - afirma. Dirceu Borboleta também é um personagem que interessava desenvolver, um funcionário ético, ingênuo, sempre espantado com os rolos do Odorico. Há um diálogo genial que define bem a relação dos dois: a certa altura, vê o chefe desviando 10% da verba da obra para o que ele chama de "partido", na verdade sua conta. Dirceu reclama, acha errado, e Odorico conduz toda a discussão de modo a inverter a situação, para fazer Dirceu sentir-se culpado. Cria toda uma reflexão onde diz que o dinheiro é para o partido e que sem partido não há democracia, para finalizar diante de um Dirceu atônito: "O Senhor é contra a democracia, seu Dirceu?". |